As Eleições Presidenciais na Guiné-Bissau
Num País à beira mar plantado o Carnaval foi antecipado
Ao longo dos últimos meses acompanhei, "in loco", o processo eleitoral referente às Presidenciais da Guiné-Bissau.
Durante cerca de quinze dias percorri o País de lés a lés, de Buba a Varela, de Caió a Pitche, do Morés a Pirada.
Durante este périplo tive a oportunidade de contactar com o verdadeiro povo guineense, aquele que diz olhos nos olhos aquilo que lhe vai na alma sem estar à espera de receber qualquer contrapartida.
Foi assim que fiquei a saber que a principal preocupação dos régulos, dos homens grandes e dos jovens não era a saúde, a subsistência alimentar ou mesmo o emprego. Por unanimidade a principal preocupação desta gente era a independência e soberania nacional. Era voz comum que o seu País tinha Forças Armadas competentes para o defender sem ter necessidade de recorrer aos países da sub região que, aproveitaram a fraqueza de alguns políticos guineenses, instalaram em Bissau um contingente militar que se limitava a intimidar os guineenses e a seduzir as jovens para entrarem nas suas instalações.
I
A 1ª Volta
Uma primeira volta que arrancou após a Comissão Nacional de Eleições, CNE, ter realizado o sorteio para atribuir a posição dos doze candidatos, entretanto validados pelo Supremo Tribunal de Justiça, STJ, nos boletins de voto.
Após o início da campanha, desde muito cedo, ficou clara a enorme diferença da capacidade financeira disponibilizada por cada um dos candidatos, dos quais sobressaia o candidato nº 2, que dispôs de um imenso leque de meios, muitos dos quais transportados em aviões fretados para o efeito, apoiado pela bem oleada máquina logística do seu partido que, bem ao jeito dos tempos do Marxismo/Leninismo, conseguiu, também, introduzir toupeiras nas campanhas dos seus principais adversários.
Assim, quando a caravana de uma candidatura chegava a determinada localidade já por lá tinha passado uma task force que comprava vacas para o almoço dos locais e dava dinheiro para os mesmos não comparecerem no comício do adversário que se realizaria mais tarde. Em determinados locais o mesmo grupo tentava comprar os cartões de eleitor dos habitantes daquela povoação a troco de sacos de arroz, porém nem sempre conseguiram os seus intentos como no caso do Morés, santuário dos guerrilheiros na época colonial, que não só recusaram como expulsaram esses intrusos. Quando lá passei ainda vi vários sacos de arroz espalhado pelo chão na proximidade das habitações.
Entretanto a caravana do candidato 2, composta por dezenas de viaturas, muitas delas topo de gama e até algumas com painéis solares, deslocava-se para outras paragens, como se nada tivesse com aquele assunto, fazendo-se acompanhar por várias dezenas de jovens que quando passavam nas localidades saiam das viaturas que os transportavam desde Bissau e ladeavam as do candidato e dos seus principais convidados.
Outra componente da estratégia deste candidato assentava na comunicação. Com atitudes bastante agressivas, levadas a cabo por alguns bloggers e "jornalistas" avençados que publicavam, sistematicamente, fake news sobre os restantes candidatos, incentivando os apoiantes do 2 ao ódio e à violência.
Com toda esta estratégia, que no mínimo roçava a ilegalidade, e com a ostentação de tamanho poderio económico, que também foi utilizado para a aquisição de várias dezenas de viaturas Toyota que foram oferecidas aos apoiantes mais fervorosos, não surpreendeu que o todo poderoso candidato vencesse as eleições com 40,13%, sem porém conseguir a maioria suficiente para evitar uma segunda volta com o candidato nº 11, que obteve 27, 65% dos votos.
II
A 2ª Volta
Após um curto período de descanso, aproveitado pelas duas candidaturas para negociarem apoios dos candidatos que ficaram pelo caminho, iniciou-se a segunda e decisiva volta, não sem antes a CNE proceder a novo sorteio para, tal como na primeira volta, atribuir a posição dos dois candidatos nos boletins de voto,
Por ironia do destino o anterior candidato nº 2 ficou com o nº 1 e logicamente o outro candidato com o nº 2.
É sem dúvida o resultado deste sorteio que vai dar início a uma nova crise política na Guiné-Bissau cujo resultado final é ainda uma incógnita, se não vejamos.
O candidato 2 na primeira volta passa agora a 1, todo o material de propaganda que tinha sobrado torna-se inútil e a capacidade financeira do candidato já não é a mesma. O governo que o tinha apoiado por ser do mesmo partido, e tinha investido na campanha as verbas destinadas ao pagamento dos salários da função pública, já não tinha a mesma capacidade financeira. Se a este constrangimento adicionarmos a perda de divisas pela falta de comercialização dos produtos Zambrano, motivada pela falência da empresa, devido à fuga para parte incerta do presidente do concelho de administração, facilmente compreenderemos que a campanha deste candidato não teria a mesma vitalidade demonstrada na primeira volta.
Apesar de todas as contrariedades já enumeradas, o candidato que tem o dom de transformar as mentiras em verdades e as verdades em mentiras, optou por realizar uma campanha como se fosse o único candidato, menosprezando o adversário, enfim transformando-se num candidato 2 em 1.
E assim arranca a segunda
volta com uma campanha morna bem longe do frenesim da primeira.
Enquanto o candidato 1 centralizava
as atenções na classe mais favorecida de Bissau, na tentativa de arrastar a
maior parte da população da capital através dos líderes de opinião, o candidato
2 deslocava-se para o interior do País, a sua verdadeira aposta desde o início
do processo eleitoral.
Não foi, portanto, de
espantar que aproveitando estas opções o candidato nº1 e os seus correlegionários
baptizassem o outro candidato como um indivíduo sem cultura e formação académica
e que precisaria de “escola”, enquanto ele tinha uma formação superior, própria
para dirigir o País. Mais uma vez a tentativa de se superiorizar a tudo e a
todos usando e abusando da mentira e da difamação que, como veremos mais
adiante, lhe vai custar caro. Ora em abono da verdade os dois candidatos têm
formação académica superior, enquanto o 1 teve a sua formação num país de Leste
o 2 teve a sua em Portugal e Espanha.
Esta estratégia adotada
pelo 1 teve o seu ponto mais alto aquando do frente a frente realizado pela TGB.
Enquanto o 1 optou por se dirigir aos telespectadores em português, língua
oficial do País, o 2 optou pelo crioulo, língua materna. Ficou bem claro que o
candidato 1 dirigia a sua mensagem prioritariamente para uma camada social que
entendia a língua portuguesa enquanto o candidato 2 ao optar por se expressar
em crioulo pretendeu e consegui uma maior abrangência já que o guineense que
sabe falar português também fala crioulo, já o contrário não será verdade. Um
erro estratégico do candidato 1, e seus assessores, que com esta atitude de, mais
uma vez, tentar demonstrar a sua superioridade, aprofundou, ainda mais, a
divisão entre a chamada Praça de Bissau e o interior do País.
Quanto ao candidato 2 percebeu
que a capital do País é importante, mas não vence sozinha as eleições e, por
isso, empenhou-se em fazer chegar a sua mensagem, igualmente, ao povo que vive
nos quatro cantos da Guiné-Bissau.
Com o aproximar do dia da
votação o candidato 1 começa a perceber que corre sérios riscos em conseguir a
vitória final pelo que recorre aos apoiantes na Diáspora, principalmente aos mais
dinâmicos de língua afiada e imaginação fértil, a deslocarem-se para Bissau, onde
têm a incumbência de influenciar os indecisos e apresentarem uma realidade virtual
nas redes sociais.
Esta estratégia também
acabaria por demonstrar os sucessivos erros dos responsáveis pela campanha do candidato
1. Não é por dar duas voltas ao Rossio, passar por baixo da Torre Eiffel ou
atravessar a ponte de Westminster que o voto dos guineenses na Diáspora tem valência
superior à dos seus conterrâneos que, no seu País, apanham a castanha de caju
ou cultivam a mandioca. Acresce a isto que os guineenses que viajaram para Bissau,
mas efectuaram o seu recenseamento na Diáspora, não poderão votar, por lei, na Guiné.
Este constrangimento viria a ser ultrapassado, como veremos mais adiante, pelo
partido que apoia o candidato 1 com mais uma mentira do tamanho do monumento à
Maria da Fonte.
Os derradeiros comícios realizados
na sexta-feira anterior ao dia da votação deu a ideia concreta do que iria
acontecer. Enquanto o candidato 1 necessitava de recorrer ao uso de cadeiras para
ocupar mais espaço no noutro ponto da cidade, mais concretamente no
espaço verde, as pessoas aglomeravam-se em pé para assistir ao comício do candidato 2.
Logo ali ficou claro que mesmo na capital, considerado bastião do candidato 1,
o 2 também dispunha de apoio considerável. Tomando como referência os
resultados da primeira volta no interior do País, em especial na zona Leste
considerada a mais populosa, de ambos os candidatos, era legítimo deduzir para
que lado estava a pender o prato da balança.
No dia seguinte, sábado,
apesar de ser considerado dia de reflexão na verdade não foi respeitado já que os
apoiantes do candidato 1, especial destaque para o grupo de convidados da diáspora,
utilizaram as redes sociais para mais uma vez insultar o candidato 2 e seus
apoiantes bem como apelar ao voto no 1.
III
O
DIA DA VOTAÇÃO
O dia 29 de Dezembro de
2019 prometia ser uma data que ficaria para posteridade como sendo de mudança para
a Paz, Estabilidade e Progresso para a Guiné-Bissau.
De
facto, os indicadores eram os melhores, o povo guineense, mais uma vez,
demonstrou o seu alto grau de civismo ao comparecer em massa para votar de
forma ordeira, respeitosa e calma. Ao fim da tarde, aquando do encerramento das
assembleias de voto, não havia a registar qualquer desacato ou ocorrência registada
pelas forças de segurança em todo o País. Algumas mesas de voto registavam um número
de votos ligeiramente superior ao indicado nos cadernos eleitorais, fruto de
mais uma artimanha do partido do candidato 1 que passou várias credenciais aos
apoiantes da Diáspora, que se encontravam em Bissau, nomeados como representantes
do partido para que assim pudessem votar.
A
próxima etapa era a da contagem dos votos e o parecer dos observadores
nacionais e internacionais.
A
expectativa durante a noite de domingo era enorme, principalmente nas sedes das
duas candidaturas. Cerca da meia-noite a candidatura do nº2 anunciava a vitória
do seu candidato, tendo por base os resultados transmitidos pelos seus
representantes nas assembleias de voto e compilados pelos seus informáticos.
Entretanto na sede do nº1 o silêncio marcava presença e a esplanada do partido
político de apoio, que normalmente disponibilizava comes e bebes aos seus
apoiantes, estava praticamente deserta.
Durante
o dia seguinte circulou a informação que o candidato 1 tinha contactado
telefonicamente o 2 para lhe transmitir os parabéns pela vitória, o que
mostrava a dignidade do candidato e o seu compromisso com a estabilização
política e social do País. Como o candidato não efectuou qualquer desmentido o
povo acreditou que tudo estava a decorrer com normalidade, a CNE anunciava, entretanto,
que os resultados provisórios seriam divulgados na quarta-feira, os
observadores classificavam as eleições de exemplares com um processo livre, justo
e transparente, elementos próximos do candidato já deitavam contas à vida e
preparavam-se para rumar para outras paragens.
Mais
tarde, porém, uma reunião na sede do partido do candidato 1 daria início a um
volte-face para muitos inexplicável. O núcleo duro do partido, liderado por um
tal Cam(e)lo, insurgiu-se contra o candidato manifestando o seu
descontentamento e recusando aceitar a derrota. O referido grupo estava
preocupado com a perda de poder e dos cargos que detinha no aparelho do estado
e da administração pública. Além disso existiam compromissos financeiros
enormes, assumidos com os investidores que financiaram parte da campanha. Para que
a contestação tivesse sucesso delinearam uma estratégia que passaria pelo
controlo do processo eleitoral no interior da CNE.
É
assim que o discurso do candidato 1 muda repentinamente, apelando aos seus
apoiantes para manterem a calma e aguardarem pelos resultados provisórios a
divulgar pela CNE. No período que mediou entre a referida reunião e o dia do
anúncio provisório pela CNE o partido usou várias estratégias e meios para
tentar influenciar os resultados a seu favor, mas encontrou pela frente uma CNE
que deu prioridade à sua imagem de imparcialidade, até porque os observadores
internacionais já tinham em seu poder cópias das atas que demonstravam a
vitória do candidato 2 e qualquer resultado diferente corresponderia ao
descrédito da instituição.
Foi,
pois, sem grande surpresa que no primeiro dia do ano 2020 a CNE publicou os
resultados provisórios em que atribuíam a vitória ao candidato 2 com 53,55%
contra 46,45% do candidato 1.
Perante
esta situação o candidato derrotado e o partido recorrem ao plano B,
apresentando uma contestação aos resultados anunciados pela CNE, junto do
Supremo Tribunal de Justiça, STJ, que desempenha igualmente a função de Tribunal
Eleitoral. Em sua defesa o colectivo de advogados do partido, especializado em
casos controversos, tais como o resgate aos bancos privados de que resultou uma
enorme delapidação do erário público em que boa parte caiu nos seus bolsos, apresenta
eventuais irregularidades. Agora, mesmo recorrendo a um mundo imaginário, era
só ver se Caía ou não Caía.
Por
incrível que pareça o STJ demorou mais de uma semana para decidir o que fazer.
Entretanto o candidato derrotado ia manobrando as suas marionetas, disfarçadas
de apoiantes, a seu belo prazer. Dizia-lhes para se manifestarem e elas
manifestavam, para insultar o candidato vencedor e seus apoiantes e elas
insultavam, enfim, a Praça dos Heróis Nacionais transformou-se num teatro de barraca
com o Palácio Presidencial ao fundo e a casa dos horrores, disfarçada de sede
de partido político, à direita. No dia 11 de Janeiro, após vários dias de introspecção
e de muito suor vertido, o STJ emite um acórdão em que determina que a CNE efectue
novamente o apuramento nacional dos resultados. Nessa altura já a CNE tinha
divulgado os resultados definitivos que confirmavam os resultados provisórios
com a vitória do candidato 2. Nesse acórdão o STJ utiliza demasiados termos
técnicos que levam a interpretações diversas. Ora o comunicado do acórdão,
embora tenha um destinatário que entende os termos empregues, também é acessível
ao público em geral que manipulado pelo papagaio disfarçado de porta-voz do
partido, que interpreta o acórdão como exigindo uma recontagem de votos, já
canta vitória e louvores ao STJ
Anteriormente,
este mesmo STJ indeferiu, liminarmente, uma contestação semelhante apresentada
pelo segundo partido mais votado nas últimas eleições legislativas. É caso para
dizer um peso duas medidas.
Nos
dias seguintes assiste-se a um braço de ferro entre o STJ e a CNE que dizia ter
esgotado todos os processos inerentes ao apuramento eleitoral e dava o seu
trabalho por concluído.
Durante
este impasse o candidato derrotado critica as instituições e personalidades
internacionais, que saudaram e até receberam o candidato vencedor, dizendo inclusive
que o processo eleitoral tinha sido uma fraude e era ele o vencedor. Esta atitude
irresponsável transmite nova esperança aos seus apoiantes e aprofunda ainda
mais a divisão já existente entre os guineenses.
Para
tentar desbloquear este imbróglio a Comunidade Económica dos Estados da África
Ocidental, CEDEAO, toma a iniciativa de organizar um plenário da CNE com a
presença de um elemento da organização da sub região, para efectuar novamente o
apuramento nacional dos resultados, o que viria a acontecer e a dar os mesmos
valores anteriormente apresentados pela CNE.
Mais
uma vez o candidato derrotado não concorda com os resultados obtidos e
apresenta novo recurso ao STJ, em solicita a nulidade do processo eleitoral na
senda volta, que aceita, vá-se lá saber porquê, e emite novo acórdão invalidando
o pedido de nulidade, mas reafirmando a necessidade da CNE efectuar o já tão
propalado apuramento nacional dos resultados.
Novo
impasse criado, o que levou a CEDEAO a emitir um comunicado a ameaçar com
sanções quem contribuísse para desestabilizar o País e todo o processo eleitoral.
Novamente cada um interpretou o conteúdo do comunicado conforme mais lhe
convinha. As sanções eram sempre para os outros.
A
CEDEAO optou, então, por contactar, em privado, as diferentes instituições por
forma a resolver o problema em definitivo. A CNE convocou e realizou novo
plenário para, pela quarta vez, efectuar o apuramento nacional dos dados da
segunda volta. Os resultados foram os mesmos com o protesto lavrado em ata pelo
representante do candidato derrotado o que dá a entender que vamos ter mais um
recurso.
A
ver vamos a decisão de um STJ que não aceita que o Tribunal de Contas analise a
contabilidade do cofre dos tribunais já que é por si gerido. Coisas da Terra.
A
derrota do candidato 1 é irreversível, de seguida o partido por si liderado vai
perder deputados e consequentemente a maioria no Parlamento, já tinha sido
penalizado com a pior classificação de sempre nas últimas eleições legislativas,
o que vai conduzir à queda do governo motivada por uma nova maioria.
No
interior do partido o líder supremo será contestado e iremos assistir a um combate
antropofágico dentro da casa dos horrores. No final o vencedor tentará
reorganizar um partido único que nos últimos anos andou disfarçado de
democrático.
Com
o novo Presidente da República e um novo governo, o povo começará ter um nível
de vida melhor e a sentir orgulho em ser guineense.
Coisas da Terra Coisas da Gente
Fernando Gomes