segunda-feira, 16 de março de 2020

GUINÉ-BISSAU

ONCE UPON A TIME

(Parte 1)

Assumi o compromisso, com os leitores deste blogue, que abordaria, num futuro próximo, as queixas de violência que supostamente, os profissionais de comunicação social estavam a ser alvo na Guiné-Bissau.
Muito sinceramente o que vou escrever em seguida é bastante doloroso para mim já que levantar questões sobre o rigoroso cumprimento dos princípios éticos e deontológicos por parte de profissionais do mesmo ramo é complicado para quem quer que seja.
Porém, o compromisso que assumi com o público, que tem no jornalista os seus olhos, ouvidos e boca, como se no local estivesse presente, o significa que acredita no profissional de informação que lhe transmite uma imagem que, para o leitor, ouvinte ou telespectador, é real e autêntica, pelo que merece todo o nosso empenho, dedicação e, acima de tudo, verdade.
Para ilustrar o que hoje em dia se passa na Guiné-Bissau, quanto à cobertura jornalística, tenho de recuar alguns anos no tempo para que o leitor deste blog viaje comigo e acompanhe o trabalho do jornalista no terreno.
Nos últimos meses de 1997 começou a ser instalada delegação da RTP África em Bissau. Após os trabalhos de construção civil, necessários para adaptar um antigo restaurante, Nam Tchit, na baixa da cidade, iniciou-se a montagem técnica do estúdio, régie e estação terrena de satélite.
Abro aqui um pequeno parêntesis para dizer que a primeira escolha, para instalação da delegação, recaiu sobre a antiga residência do governador da época colonial, que se encontrava praticamente em ruínas e foi restaurada pela RTP, após acordo com as autoridades guineenses. Depois de totalmente recuperado, o edifício viria a ser cobiçado por alguém que impossibilitou a montagem da delegação naquele local e motivou a consequente mudança para outro espaço, mas isso será abordado numa próxima oportunidade.
Voltando à delegação a montagem ia avançando, a equipa de profissionais estava praticamente constituída e a ligação ao satélite estaria operacional nos próximos dez dias, já que era necessário completar o contrato com a Intelsat para efectuar os ensaios finais que possibilitariam que o sinal de televisão chegasse à régie final da RTP, através da Marconi, instalada no edifício sede na Av. 5 de Outubro em Lisboa.
Porém, o impensável aconteceu. No dia 7 de Junho de 1998, cerca das 05,00 horas da manhã, começaram a ouvir-se os primeiros tiros daquilo que viria a transformar-se num dos golpes de estado mais violentos e sangrentos de que há memória em África.
O Exército guineense, comandado pelo Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, General Ansumane Mané,  revoltou-se contra o Presidente da República Nino Vieira e deu origem a uma guerra civil que viria a marcar profundamente o futuro do País.
Nessa altura, o trabalho da delegação da RTP África foi fundamental para dar a conhecer ao mundo o que se estava a passar no País.
A cidade de Bissau ficou praticamente sitiada e o trabalho dos jornalistas era constantemente levado a cabo de baixo de fogo. 
Ao fim de três dias a equipa de profissionais da RTP tinha praticamente desaparecido apenas fiquei com a jornalista guineense, Gilda Casimiro, que sempre me acompanhou até ser retirada pela RTP para Lisboa.
Durante os dias que se seguiram assisti e reportei a chegada das tropas senegalesas que vieram apoiar o Presidente Nino, que até então apenas contava com as forças da Marinha guineense.
Os bombardeamentos à cidade de Bissau eram constantes e as respostas a partir da Amura também.
No primeiro dia transmiti imagens do carro que transportava Rachid Saiegh e Eugénio Spain que viriam a ser mortos após ataque das forças de Ansumane, quando se dirigiam ao aeroporto para preparar a segurança do Presidente da República, que mais tarde deveria viajar para o exterior, o que não veio a acontecer.
Foram essas as primeiras imagens que deram a conhecer ao mundo o que se estava a passar na Guiné-Bissau. Fiz as imagens e o texto, a Gilda escondeu a cassete na carteira para o caso de sermos interceptados.
Após a exibição das imagens, por várias cadeias de televisão, o assessor de comunicação do Presidente Nino, Barnabé Gomes, veio perguntar-me se tinha sido eu que tinha enviado as imagens e como as tinha conseguido. Como desconhecia qual seria a reacção neguei pelo que Barnabé atribuiu a captação de imagem aos satélites americanos.
Nos dias que se seguiram reportei as cenas de guerra que se iam sucedendo entre as tropas da auto denominada Junta Militar e as forças fiéis a Nino Vieira apoiadas pelas forças da Guiné Conakry e do Senegal, que entretanto chegaram por via marítima.
Durante os primeiros dois dias ouvi a versão e justificações do confronto por parte do super ministro de Nino Vieira, João Cardoso. 
Como a cidade de Bissau estava sitiada por terra, senti a obrigação de ouvir a outra parte e desloquei-me, utilizando picadas e bolanhas que começavam junto da aldeia SOS, para atingir a zona do aeroporto já controlada pela Junta Militar.
A determinada altura fui interceptado por uma patrulha da Junta que me interrogou sobre a minha presença e objectivos. Após explicação levaram-me para uma zona onde estava o capitão da Força Aérea, Manuel "Mina", então porta-voz da Junta. Aceitou a entrevista por mim pretendida que começou a ser realizada no exterior de um restaurante em frente aos estaleiros da Soares da Costa, porém como de repente começamos a ser bombardeados apressa-mo-nos  a recolher num pequeno edifício, onde estava instalada a estação de rádio "Voz da Junta Militar" tendo completado a entrevista com imagens da emissora e dos seus profissionais.
Manuel "Mina" pretendia algumas informações sobre o que estava a acontecer no interior da cidade em especial do posicionamento das forças leais a Nino Vieira, o que eu recusei liminarmente.
Após a chegada a Bissau também fui abordado por elementos da confiança do Presidente Nino no sentido de obterem dados sobre o "outro lado", a resposta foi a mesma.
A partir de determinada altura o delegado da Agência Lusa, Adalberto Rosa, solicitou apoio logístico para se mudar para a delegação da RTP, já que o seu escritório/residência tinha sofrido estragos devido aos bombardeamentos. Desde aí trabalhamos em conjunto na troca de informações até à sua ida para Lisboa.
Produzi reportagens sobre a brutalidade dos bombardeamentos de um lado e do outro com mortos nos vão de escada da "Casa Escada" ou com mulheres e crianças a desaparecerem arrastadas pela corrente do Geba, durante a tentativa de fuga do teatro de guerra.
Apesar de toda a violência, e de ter sido detido por três vezes pelas tropas senegalesas, não me queixei a ninguém.
Muito mais há para contar, tal como a fuga de civis no Ponta de Sagres, tudo aquilo que a rodeou e nunca foi contado, ou a chegada dos fuzileiros portugueses para a evacuação no Barrio, ou ainda a história dos bebés RTP.
Tudo isso ficará para outra ocasião, agora apenas ficou a posição de um jornalista que quando se despediu de Nino Vieira e de Ansumane Mané, para regressar a Portugal, foi reconhecido por ambas as partes como rigoroso imparcial e verdadeiro.
 Este é o trabalho dos jornalistas, quem não está disponível para enfrentar determinados desafios, está à espera que todos sejam simpáticos, mesmo quando por vezes fazemos perguntas inconvenientes e não obtemos as respostas desejadas, ou pura e simplesmente não nos respondem, não podemos ir a correr fazer queixinhas às ligas dos direitos humanos ou aos titulares das pastas da comunicação social.
O jornalismo sério e honesto tem os seus riscos e não é para virgens ofendidas.
Quem não está bem muda de profissão.
Coisas da Terra Coisas da Gente
Fernando Gomes




  

Sem comentários:

Enviar um comentário